Estados Unidos e Rússia: belicistas e pacificadores
Por Somar Wijayadasa*
NOVA YORK (IDN) – Poucos dias após a entrada em vigor, em 22 de janeiro de 2021, do Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares (TPNW, na sigla em inglês), que veta explícita e inequivocamente o uso de armas nucleares – uma vitória memorável para a humanidade – Estados Unidos e Rússia prorrogaram até 2026, a dois dias de expirar, o Tratado de Redução de Armas Estratégicas (New START).
Também é digno de nota que EUA e Rússia deram as mãos em um momento de azedume e forte antagonismo na relação bilateral.
Originalmente assinado em 2010 pelo então presidente norte-americano Barack Obama e seu homólogo russo Dmitry Medvedev, o acordo estabeleceu a maior restrição em décadas à quantidade de ogivas nucleares, mísseis balísticos e bombardeiros que cada lado pode ter. O ponto mais importante do acordo, no entanto, é que ambos os países poderão monitorar as forças, instalações e atividades nucleares um do outro.
Não sem antes reconhecer que a Rússia segue cumprindo sua parte no acordo, o secretário de Estado norte-americano Antony Blinken declarou: “Especialmente em tempos de tensões, é de vital importância garantir limites verificáveis sobre as armas nucleares russas de alcance intercontinental.”
Comentou ainda que a prorrogação do tratado “tornou o mundo mais seguro”, acrescentando que “uma competição nuclear irrestrita colocaria todos nós em perigo”.
Ao assinar o documento, o presidente russo Vladimir Putin declarou que o New START “permite manter a transparência e a previsibilidade nas relações estratégicas entre a Rússia e os EUA, bem como preservar a estabilidade estratégica global”.
Além disso, apontou que o tratado “terá um efeito positivo na conjuntura internacional, contribuindo para o processo de desarmamento nuclear”.
O tratado limita os arsenais de ambas as potências a 700 mísseis balísticos intercontinentais instalados (ICBM, na sigla em inglês), mísseis balísticos de base submarina (SLBM, na sigla em inglês) e bombardeiros equipados com armas nucleares; a 1.500 ogivas nucleares nesses armamentos; e a 800 lançadores para os mesmos armamentos — instalados, ou não.
A corrida armamentista nuclear
A corrida armamentista entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética começou em agosto de 1945, depois que o mundo testemunhou a destruição causada por duas bombas atômicas lançadas pelos EUA sobre Hiroshima e Nagasaki, cujos efeitos causaram a morte de 129.000 e 226.000 pessoas, respectivamente.
Embora não fosse ainda uma superpotência no rescaldo da devastação sofrida na Segunda Guerra Mundial, a União Soviética não aceitava que os EUA tivessem nas mãos uma arma com tamanho poder destrutivo.
Ao adquirirem a bomba atômica em 1949, os soviéticos não só neutralizaram o equilíbrio de poder dos norte-americanos, como também puseram um freio às guerras destrutivas e, talvez inadvertidamente, propiciaram a paz.
Assim começou a corrida armamentista nuclear e a disputa de poder entre os EUA e a União Soviética. Quando as duas superpotências finalmente concordaram em negociar uma série tratados e iniciativas bilaterais para o controle de armas, já tinham acumulado um estoque de cerca de 70.300 ogivas nucleares.
Desde então, uma geração inteira cresceu sob a sombra de uma catástrofe iminente e, em momentos como a Crise dos Mísseis em Cuba, em 1962, havia um medo generalizado de que a humanidade fosse extinta.
Graças a vários tratados de redução de armas, as reservas nucleares foram reduzidas a um total de 13.865 armas. Contudo, as 6.185 e 6.500 ogivas nucleares que EUA e Rússia detém, respectivamente, até hoje, já seriam suficientes para incinerar várias vezes o planeta.
Um ponto de virada no controle de armas
As conversações entre norte-americanos e soviéticos sobre o controle de armas começaram oficialmente em 1963, quando representantes dos EUA, URSS e Grã-Bretanha assinaram o Tratado de Interdição Parcial de Testes Nucleares, que proibia testes nucleares na atmosfera, no espaço exterior e sob a água.
De 1969 em diante, os dois países assinaram diversos acordos sobre o controle de armas nucleares.
As Conversações sobre Limites para Armas Estratégicas (SALT, na sigla em inglês) tiveram início em 1969 e resultaram na assinatura do Tratado sobre Mísseis Antibalísticos (ABM, na sigla em inglês) em 1972. Embora o SALT II tenha surgido ainda em 1972, ele ruiu depois que a União Soviética invadiu o Afeganistão, em dezembro de 1979.
O Tratado de Redução de Armas Estratégicas (START), assinado em 31 de julho de 1991 pelo então presidente norte-americano George H. W. Bush e seu homólogo soviético Mikhail Gorbachev, restringia o arsenal estratégico instalado de cada país a 1.600 veículos de lançamento com no máximo 6.000 ogivas, contabilizados segundo as regras do acordo.
Mesmo após a dissolução da União Soviética e durante os tempos difíceis que se seguiram, a Rússia não perdeu o ímpeto.
Em janeiro de 1993, os presidentes George H. W. Bush e Boris Yeltsin assinaram o START II, que limitava o arsenal estratégico instalado de cada país a 3.000-3.500 ogivas e bania os desestabilizadores mísseis de base terrestre com ogivas múltiplas.
Após alguns atrasos no processo de ratificação, o START II foi arquivado em razão de os EUA terem se retirado do tratado ABM de 2002.
Em maio de 2002, os presidentes George W. Bush e Vladimir Putin assinaram o Tratado sobre Reduções de Ofensivas Estratégicas (SORT), que acabou substituído pelo tratado New START.
Em abril de 2010, Estados Unidos e Rússia assinaram o New START, um acordo legalmente vinculante e verificável que limita o arsenal de cada lado a 1.550 ogivas nucleares estratégicas instaladas em 700 sistemas de lançamento estratégico (ICBMs, SLBMs e bombardeiros pesados) e a 800 lançadores – instalados, ou não.
Desde a Segunda Guerra Mundial, e inclusive em meio às hostilidades da Guerra Fria, os EUA e a União Soviética (e a atual Rússia) se uniram em diversos projetos extraordinários, que beneficiaram não apenas as duas nações, como também o resto do mundo.
Por exemplo: Os dois países juntaram forças no Tratado de Interdição Parcial em 1963; na missão Apollo-Soyuz, em 1975, quando os rivais da Guerra Fria se encontraram no espaço orbital; no Tratado sobre Forças Nucleares de Alcance Intermediário (NIF, na sigla em inglês) de 1987; na primeira missão espacial conjunta EUA-Rússia, em 1994; e em 1995, quando o ônibus espacial norte-americano Atlantis atracou na estação espacial russa Mir, formando a maior espaçonave já colocada em órbita.
Estes são eventos marcantes da história, protagonizados por duas superpotências adversárias, EUA e Rússia (tidas mais como bélicas do que pacificadoras), que, ao trabalharem juntas, reduziram significativamente seu armamento nuclear de 70.000 ogivas durante a Guerra Fria às atuais 14.000.
Desde sua criação, em 1945, as Nações Unidas lutam para abolir as armas nucleares e alcançar assim seu nobre objetivo de “salvar as próximas gerações do flagelo da guerra”.
O Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares (TPNW, na sigla em inglês) que entrou em vigor em 22 de janeiro de 2021, proíbe explícita e inequivocamente o uso, ameaça de uso, desenvolvimento, produção, testes e estocagem de armas nucleares. Além disso, obriga seus signatários a não ajudar, encorajar ou induzir ninguém de forma alguma a se envolver em qualquer atividade proibida pelo Tratado.
Referindo-se ao TPNW, Peter Maurer, presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR), disse: “Hoje é um dia de vitória para a humanidade. Este Tratado – resultado de mais de 75 anos de trabalho – transmite a mensagem clara de que as armas nucleares são inaceitáveis do ponto de vista moral, humanitário e agora também legal. Reforça a estigmatização das ogivas nucleares e ergue barreiras legais ainda mais elevadas as já existentes sobre seu uso. Com ele, podemos imaginar um mundo livre dessas armas desumanas como um objetivo alcançável”. [IDN-InDepthNews – 05 de fevereiro de 2021]
*Somar Wijayadasa é advogado internacional, ex-professor da Universidade do Sri Lanka (1967-1973), já trabalhou em agências da ONU (IAEA e FAO, de 1973 a 1985), foi delegado da UNESCO nas sessões da Assembleia Geral de 1985 a 1995 e representante da UNAIDS de 1995 a 2000.
Foto: Presidente Barack Obama assina o (tratado) New START no Salão Oval em 2 de fevereiro de 2011 – com o vice Joe Biden (mais à direita).
Crédito: Chuck Kennedy (foto oficial da Casa Branca)